Revista Eletrônica - Letras Lusitanas
O NARRADOR PORTUGUÊS
27/11/2014 06:57Que professor de Literatura nunca explicou para seus alunos as diferenças entre os tipos de narradores?Quando se trata da literatura portuguesa, sobretudo a contemporânea, podemos dar uma volta na teoria e não só destacar a classificação do narrador sob ótica literária, mas também observar a existência de inovação artística e criatividade estética.
Quando se fala, por exemplo, em estética, cogita-se à respeito de uma beleza artística textual,a qual, no processo de tessitura das literaturas anteriores,andava em conformidade com as regras clássicas de escrita.No entanto, não é isso o que acontece geralmente com as narrativas contemporâneas. Os mais recentes autores da produção portuguesa têm modificado o processo de composição literária, alterando a visão em torno de uma narração idealizada no vigor exagerado do padrão clássico e concebendo alteridade ao texto. António Lobo Antunes merece destaque neste quesito, conforme mostrado no seguinte trecho de sua autoria:
Foi examinar-se ao espelho, assegura-se da gravata, do casaco, da risca do cabelo, e pensou
– Sou médico
do mesmo modo que as crianças repetem
– Sou médico
ao atravessarem os corredores sem luz, transidas de dúvidas e de pavor. (ANTUNES, 1988, p. 56)
Este fragmento foi retirado do romance de Lobo Antunes intitulado Conhecimento do inferno,publicado em 1981, o qual conta a história através de sucessivos flashbacks de um psiquiatra que viaja sozinho de carro do Algarve em direção à praia das maçãs, perto da vila de Sintra e em Angolae no Hospital Miguel Bombarda, onde exerce psiquiatria. Em meio à lembranças de suas experiências devida, o narrador transmite os horrores de uma guerra, onde serviu como médico cirurgião.
Um narrador que se encontra envolvido com pensamentos incertos e angustiantes elabora o foco narrativo bem próximo de seu estado de vida. Como se observa no fragmento citado,o texto não possui pontuação conforme às prescrições clássicas: ao indicar o pensamento, o narrador utiliza um travessão para iniciar a expressão “Sou médico”, a qual não termina com ponto final;inicia o período seguinte com letra minúscula, o qual também é finalizado sem pontuação. Esse processo se repete nos próximos dois períodos, o que dá impressão o fragmento consistir na narração de pensamentos, que seria a representação dos pensamentos do próprio narrador, pois as frases dão ideia continuidade sem interrupções, na quais não se observa a presença de virgulas e dois pontos.
Este texto é louco, não é? Se se considerando uma estrutura tradicional do texto, pode-se responder afirmativamente. Mas, se pensarmos a respeito do estado de vida do narrador, poderemos responder de maneira negativa e acrescentar que na literatura há espaço para a inovação da linguagem quanto à expressão linguística.
Há quem se questiona, por exemplo, se há um só ou vários Lobo Antunes. Há quem legitime a existência de mais de um, aliás um escritor – e tambémmédico psiquiatra – que procura registrar fidedignamente as diversas nuançasda mente humana, só pode ser multifacetado em sua obra. Diz-se que ele recebeu influência Vergílio Ferreira, outro escritor português cujo existencialismo é a marca predominante em sua obra.
Assim como o narrador de Lobo Antunes ilustra seu texto com loucura, o de Vergílio Ferreira faz o mesmo utilizando o existencialismo, como se vê no seguinte excerto:
Um dia fui com Vanda... Vanda! Teu nome. Como um vento do norte. Fui contigo ao monte mais distante que se via do monte de S. Silvestre: havia outros montes para além. Naturalmente, se continuasse, voltaria ao ponto de partida: é a forma da vida humana – ou não? O círculo. (FERREIRA, 1972, p. 16)
Em Alegria breve, romance de Vergílio Ferreira publicado em 1965,o professor Jaime Faria, narrador-personagem, encontra-se em um aldeia de montanha em Portugal e enfrenta uma crise em seu destino.Durante todo o enredo, o narradornão poupa em utilizar marcas existencialistas no processo de tessitura textual. Como observamos na parte mencionada, no texto ele faz ora afirmações, ora questionamentos. Em outros romances deste autor, Nítido nulo e Signo sinal, determinado pelo fluxo das lembranças e perturbações interiores, ele não sabe exatamente em que momentos os fatos narrados ocorreram e exprime constantes questionamento acerca da vida, da morte, da existência deDeus, de uma vida eterna após a morte, entre outros.
Ao contrário de Lobo Antunes, a composição textual do narrador de Vergílio Ferreiraestá de acordo com um padrãoculto, sendo quea narração é levada por grandes pausas, questionamentos, afirmações, enlace de ideias, mudanças de planos narrativos e fluxo de consciência. Lobo Antunes, influenciado por Vergílio Ferreira,usa esses mesmos recursos narrativos, mas vai além de seu mestre, pois rompe com as regras da escrita formalquandoelabora uma narração próxima da loucura.
Por último, outro escritor contemporâneo português que merece destaque por sua engenhosa atividade de narração é José Saramago, autor de As intermitências da morte, obra publicada em 2005 a cujo enredo consiste em uma ampla divagação sobre a vida, a morte, o amor e o sentido, ou a falta dele, da nossa existência, como se observa na seguinte passagem do texto:
Boas noites, eminência, até amanhã. Se deus quiser,senhor primeiro-ministro, sempre se deus quiser. Tal como estãoas cousas neste momento, não parece que ele o possa evitar. Nãose esqueça, senhor primeiro-ministro, de que fora das fronteirasdo nosso país se continua a morrer com toda anormalidade, e isso é um bom sinal... (SARAMAGO, 1988, p. 12)
Este romance possui linguagem semelhante da época do enredo, por meio do qual percebemos certa formalidade quanto ao processo de escrita do texto. Em um contexto de literatura contemporânea, observamos que José Saramago é diferente de António Lobo Antunes e Vergílio Ferreira. O primeiro adota a técnica de escrita formal, enquanto os outros dois distorcem as normas da escrita formal, sem levar em consideração, por exemplo, a ortografia e a pontuação, mas dando ênfase ao monólogo interior e ao fluxo de consciência. Além disso, no decorrer do romance, notamos um Saramago além das reflexões existenciais, fazendo uma dura crítica à sociedade moderna.
Pontos chaves, pois, merecem ser destacados observando o processo narrativo destes escritores. Enquanto Lobo Antunes e Vergílio Ferreira tentam interpretar a mente, emoções e sentimentos dos seres humanos através de uma inovação da linguagem, Saramago usa do sarcasmo e ironia para criticar as pessoas e os diversos setores da sociedade. E, enquanto os narradores dos romances dos dois primeiros escritores fazem do texto um instrumento artístico, brincando com as palavras e com a diversidade da linguagem, a obra o último se mantém em uma forma padrão, mas também oferece seu valor literário, que consiste em uma função da social.
Em obras da literatura portuguesa, portanto, existe inovação artística e criatividade estética, o que possibilitao rompimento dos pressupostos clássicos de uma arte textual primitiva e obsoleta.Os narradores da obra contemporânea têm infinitas maneiras de narrar, os quais não se limitam aos pressupostos de uma arquitetura estereotipada por uma escola literária, mas se estabelece a partir do diverso, do ilimitado, do novo.
REFERÊNCIAS
ANTUNES, António Lobo. Conhecimento do inferno.9. ed. Lisboa: Beira Douro, 1988.
FERREIRA, Vergílio. Alegria Breve. São Paulo: Verbo, 1972.
SARAMAGO. José. As intermitências da morte.São Paulo: Companhia das Letras, 2005.
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